No final da noite, a luz
O luto é um estado de não-vida dentro da vida. Começa com o anúncio da morte da pessoa que amamos, invade a nossa mente nos meses que se seguem, parece que se eterniza, dá um aperto no coração e uma sensação de corpo vazio. Só muito lentamente, de uma forma imperceptível, ele se retira para deixar espaço novamente para vida normal. Esta é uma das provas mais difíceis da nossa existência. Várias etapas pontuam o longo caminho para o enlutado, o acompanhamento por parte dos familiares é importante, mas nem sempre é suficiente. Quando o processo de luto normal pára, numa das fases, o luto pode tornar-se patológico, a ajuda de um profissional é essencial para recuperar o gosto pela vida.
- As fases do processo
O Luto é um processo em que a pessoa “trabalha” sobre si própria para se adaptar à perda da pessoa amada. Este processo leva tempo, muito tempo, tem várias fases. Na primeira, predomina a negação, na segunda, a pessoa percebe realmente o que aconteceu, e a terceira começa quando o enlutado se começa a recuperar.
1.1. A Negação
“Isto não é verdade.” A pessoa nega a realidade da morte. A negação serve para proteger a mente de uma sobrecarga emocional. Reconhecer e aceitar a inevitabilidade da morte de um ente querido é um choque muito grande. O anúncio de morte é equivalente a uma pancada forte na cabeça, mesmo quando a morte resulta de uma doença grave, cujo prognóstico era conhecido. A pessoa fica num estado de perplexidade, as emoções podem ficar “dormentes”, e a pessoa age como que de uma forma mecânica. Por vezes, há pessoas que durante alguns dias não são capazes de chorar, contudo, confrontadas com a violência de emoções, vendo o corpo o corpo sem vida pode ajudar a afastar a negação. Da mesma forma, o funeral, pelo ritual e pela presença de familiares e amigos, pode ajudar a pessoa a cair na realidade do luto, aos poucos, esta realidade da morte vai-se integrando no pensamento da pessoa. No entanto, no pensamento dessa pessoa, a espera por um milagre continua a fazer sentido, busca silenciosa e secretamente a espera por um retorno impossível.
Esta primeira fase onde prevalece a negação, não deve ser confundida com a aparente perda de interesse, que pode estar presente através de tarefas “hiperativas”, ou seja, algumas pessoas, nesta fase, não se permitem a um momento para respirar, ficam deslumbradas pelo trabalho, fogem da inatividade, na qual podem ser “apanhadas” pelas emoções. Sentem-se oprimidas e recusam-se a entrar no verdadeiro luto. A dor permanece camuflada, e pode vir ao de cima perante uma nova morte, que afeta a pessoa e substitui uma dor pela outra, ou pode ser somatizada. Isto é chamado de atraso ou inibição do luto.
1.2. O confronto com a ausência
A perda da pessoa amada é muito sentida porque tudo falta: cumplicidade, a intimidade compartilhada, todas as memórias, os seus carinhos, as suas palavras meigas, os seus gestos, o seu olhar, até mesmo o ritmo da respiração á noite, o calor do corpo na cama… A ausência é muito longa, infinitamente longa, as horas nunca mais passam. Os dias passam, um após o outro, da mesma forma, sem ele ou sem ela… Conforme o tempo passa mais a sua ausência é sentida. A pessoa vagueia entre as suas quatro paredes, sem saber o que fazer com seu o desespero. Por vezes dá vontade de ligar à pessoa desaparecida, implorando-lhe que volte, gritar pela sua ajuda, com as emoções a transbordar. O enlutado sabe que isso é impossível, mas explode….
Ela quer voltar, apagar e começar alguns episódios, mas é tarde demais, tudo está escrito, definitivamente. Todos os pensamentos convergem no falecido, também por medo de esquecer, as roupas do outro são inalados para encontrar o seu perfume, o seu rosto é nomeado na memória para verificar se os termos preferenciais ainda estão lá… imperceptivalmente, a relação é reconstruída dentro de si mesmo.
A dor da perda é imensa por vários meses. De semana para semana, ela até parece crescer, deixando a pessoa sentir que não pode ser pior, o peito aperta, dia a dia, uma e outra vez. Diz-se que isto vai passar com o tempo, mas é exatamente o oposto: fica pior! Fazer essa observação é enlouquecedor. O luto é misturado com o medo de enlouquecer.
Sem descanso, excepto dormir com comprimidos, muitas vezes poucas horas, duas ou três, raramente mais. O inconsciente não assimila a mudança, e os sonhos continuam a encenar a ser desaparecido como se nada tivesse acontecido. O despertar é regularmente trágico, nesse momento o enlutado é confrontado com o terror do vazio. Os lugares são assombrados, animados de memórias dolorosas desde que ele ou ela não está mais por perto. Os sons familiares, como um carro entrar na garagem, o toque do telemóvel, um barulho dentro de casa, servem para reavivar a esperança louca de um retorno. Numa fração de segundo, a pessoa diz que é o seu marido (esposa) que retornou… Cada vez que isto acontece, volta a decepção e a necessidade de enfrentar a realidade.
O sofrimento é tal que o suicídio é uma grande tentação. Considerar a morte pode ser a última defesa a que a pessoa se agarra para acabar com a provação que está a passar, a ideia de morte parece dar-lhe uma espécie de alívio. Paradoxalmente, a fantasia de se matar a si próprio, ajuda a sobreviver a mais um dia difícil desta prova. Durante este período, a pessoa está no fio da navalha, porque o perigo da passagem ao acto nunca é excluído. É por vezes mesmo real e ao contrário da crença popular, não é porque a pessoa fala sobre ele que não o vai fazer.
A pessoa que perde alguém, trava uma verdadeira luta interior para continuar a viver, sentindo-se ela própria morta por dentro, a existência perdeu o significado, ela também está absorvida no “túmulo”, e a dor grita. Sente-se mal, tão mal, dentro deste invólucro carnal que a mantém sobre a terra…. tem a sensação de ser condenada a viver. Ela já derramou muitas lágrimas, mas continuam a jorram sem parar. O sofrimento não tem sequer a decência de não derramar se mostrar em público, a vergonha de não ser capaz de se conter, empurra a pessoa para dentro de casa. Quando está sozinha, a dor é mais difícil de suportar, as emoções estão cansadas de estar retidas, a pessoa desespera pro sair deste inferno… sente-se que vai morrer de tristeza.
1.3. Luz ao fundo do túnel
O enlutado está preso num mundo doloroso que se sente incapaz de olhar para um futuro melhor. O sofrimento deixa-o tão cego que ele é incapaz de ver uma luz e o sol a brilhar ao fundo do túnel. Já não tem os recursos para encontrar dentro de si a força para acreditar que a sua dor pode diminuir, ou até passar, e, portanto, não se consegue agarrar à ideia de um depois mais sereno, e muito menos, mais feliz. É apenas no final do processo de luto que isto será possível. Enquanto isso, vai ouvindo os outros dizendo-lhe que é isso é possível. Mesmo se essas palavras parecem não atingir a pessoa, é necessário repetir constantemente esta mensagem para que, um dia, sem uma compreensão clara de como uma mudança imperceptível ocorreu, essa pessoa possa ouvir e receber essa informação e aceita-la. Nesse momento, pega a sua carga de dor tão pesada nos braços, e avançar em direção à luz. Gradualmente, os sorrisos serão mais numerosos, também irá retornar o riso e, em seguida, o prazer de viver. Algumas datas importantes, como o aniversário da morte e as circunstâncias da vida, como o casamento dos filhos, irão reativar o luto, como uma cicatriz que se sente em momentos de “tempestade”.
- Reações das pessoas mais próximas
Claro que, depois do funeral, apesar das promessas, alguns membros da família ou amigos se manifestam relativamente à situação, há o mais leal, o mais cuidadoso, o mais presente, fazendo tudo o que podem para aliviar o peso da dor da pessoa. No entanto, meses se passaram sem que a pessoa dê um passo em frente para seguir com a sua vida normal. As pessoas mais próximas sentem que os seus esforços são em vão, que fracassaram e desanimam, sentem-se impotentes, e por vezes chegam a ser rudes e agressivos para com a pessoa em questão “Mexe-te!”, “Anima-te!” , “Vê se ganhas vontade de fazer alguma coisa!” como se se tratasse de vontade. Estas palavras causam reações contraditórias na pessoa em causa, fica um pouco magoada, entende mal estas palavras, sentindo-se culpada por não ser mais forte. Contudo, há outras pessoas próximas, altamente disponíveis a esgotar todas as tentativas, frente a esta situação, e continuam a ouvir silenciosamente e mostrando compreensão da sua parte. O luto de um ente querido confronta-nos com a perspetiva da morte, os meses seguintes podem ser muito difíceis de ultrapassar e “manchar” a nossa felicidade para sempre. É necessário estar muito atento e ajudar a reorganizar as ideias e sentimentos, para que essa pessoa se possa reorganizar nesse sentido.
As pessoas mais próximas podem ajudar de diferentes formas. Em primeiro lugar, não devem ser desanimadores e devem manter uma presença regular com a pessoa em causa, embora essas investidas possam ser recusadas, não se devem afastar por um período de tempo muito longo, devem continuar a oferecer apoio, e uma relação intima privilegiada, longe da multidão, porque um dia qualquer, o enlutado vai aceitar a ajuda e sair do seu isolamento. Acompanhar ao cemitério também é uma coisa boa, porque estes rituais têm uma função simbólica, sentem-se ligados à pessoa que perderam, facilita a integração da ausência dessa pessoa. Podem sugerir-se como forma de apoio a execução de rotinas em conjunto, como rezar, ouvir a sua música preferida para homenagear a pessoa desaparecida… Pode aconselhar-se o enlutado também a manter longe do pensamento a imagem da urna funerária, ajudando a lembrar outros momentos mais felizes do casal, ou da relação em causa. A imagem da urna é mórbida, mas muitas vezes é a ultima imagem que permanece no imaginário dessas pessoas.
Por vezes, as pessoas mais próximas, com medo de acordar o sofrimento do enlutado, evitam falar sobre o falecido, o que não deve acontecer. O enlutado teme que o falecido seja rapidamente esquecido, e é preciso lembra-lo que este não é o caso. Por outrolado, deve por-se à prova, precisa sentir a dor para esvaziar as suas memórias das emoções negativas e voltar a confiar. Este caso é especialmente importante nas crianças, porque precisam de sentir que o outro não vai entrar em colapso e sentirem-se seguras com quem resta a seu lado. Além disso, deve mencionar-se falecido, seja nos aspetos positivos como negativos – como qualquer um, não era perfeito – para que não seja idealizado como um ser perfeito, este ponto não deve ser esquecido porque a idealização positiva dos desaparecidos é uma coisa comum e dificulta a resolução de luto. Aumenta a culpa, porque enfrentar alguém ideal, põe-nos como pessoas com menos valor e reprováveis, impedindo que os outros “cheguem aos calcanhares” do falecido, dificultando a aceitação da morte.
- Complicações do luto
O luto é provavelmente o teste mais exaustivo de todos. O caminho para chegar ao fim é muitas vezes caótico. Vários fatores podem influenciar a sua evolução num sentido positivo ou negativo:
– A natureza da relação com o falecido (pai / filho, marido, amigo, uma relação conflituosa ou terna…)
– As circunstâncias da morte (doença, homicídio, suicídio, acidente, com dor ou não …)
– O grau de dependência da mesma (dependência emocional, financeira …)
– O tempo de acompanhamento durante a doença,
– O sexo da pessoa (há diferenças na expressão da dor se for masculino / feminino)
– A acumulação ou não de trauma passado
– Etc.
O suicídio, por exemplo, deve ser considerado um grande trauma para aqueles que permanecem vivos. Ocorre nestes casos, um abandono deliberado que coloca a pessoa em questão como pouco importante, sentindo-se indignada por não ser importante o suficiente para o impedir de se matar. O suicídio é uma forma de morte que deve ser justificada. Além disso, os sobreviventes também podem ser tentados a cometer o ato irreparável ou para se juntar ao falecido, quer para pagar os erros de que se sente culpado ou ainda para se desligar da dor.
A culpa excessiva do sobrevivente é uma das complicações de luto. Dada a forma absurda da perda da pessoa amada, a revolta e a raiva podem tomar dimensões de um estado de “loucura”, de difícil controlo, até mesmo de revoltar contra si próprio, o luto pode continuar indefinidamente. Chorar a pessoa amada pode tornar-se também crónico, quando a pessoa não se resigna a dizer “adeus”, permanecer na dor é uma maneira de ficar perto do falecido.
Durante o luto de uma criança, os pais são bombardeados com perguntas e tendem a tomar sobre seus ombros toda a responsabilidade do drama. Um aborto não é um evento trivial porque já investiram sentimentos e idealizações no feto. Chorar uma criança natimorta também é muito difícil, nestes casos, muitas vezes, é positivo que os pais possam ver o seu filho para que ver uma realidade daquilo que eles imaginaram durante nove meses. Aqui também o pai deve ser considerado enlutado. Após a morte de uma criança, é essencial que passem por todas as fases do luto e que este fique bem resolvido, uma vez que, o próximo filho poderá muito bem ser um substituto do primeiro e não ser amado por si mesmo.
- O psicólogo
Várias situações exigem o recurso a um profissional da psicologia:
– Luto dura meses sem que a dor diminua;
– A tentação do suicídio é diária, e já se desenvolveu um plano de ação;
– A pessoa lentamente se autodestrói (anorexia, bulimia, alcoolismo, drogas, não se entrega ao trabalho, etc.);
– A pessoa, mesmo depois de dois ou três anos, é incapaz de fazer novas amizades ou ligações;
– A pessoa tornou-se amargurada com a vida, negativo;
– A perda do ente querido está difícil de superar, o enlutado sente que esta perda interrompe o curso da sua existência.
Todas as provações da vida vêm à tona durante um luto e, inicialmente, esta avalanche de sensações assalta a pessoa. Este sofrimento pode ser entendido como uma aprendizagem, que deve ser parte da história humana. As sessões com um psicólogo permitem construir pontes sobre essas falhas e abismos, como uma mão que nos ajuda a atravessar para o outro lado. Aqui não ocorrem julgamentos nem críticas, nem ninguém é condenado, apenas é ajudado a aceitar a nova condição da vida. Lentamente, ao expressar as emoções de desgaste, as memórias são purificadas como se as lágrimas tivessem limpo a dor. Durante o intercâmbio com psicólogo, são revelados os medos, sentimentos de culpa… para que possamos de uma forma consciente pensar sobre o que fazer, continuar alimentar esses sentimentos negativos ou deixá-los derreter como neve ao sol?
Sim, as coisas boas ainda nos esperam, hoje, amanhã, em breve … Quando a turbulência causada pela perda do amado passa, podemos continuar a nossa existência de um modo diferente, mais capazes de nos alegrar com coisas simples, mais conscientes da alegria de viver, o luto é longo…